Elixandra cardoso, costura pensamento

"Tecendo silêncios e sentidos entre fios e pensamentos"

Textos


“Entre Linhas e Lençóis: Remendo pra Dois”

Costura de Silêncio e Conselho:

 

Era cedo ainda, quando o telemóvel apitou feito passarinho ansioso: pim pim.

A mão, preguiçosa, escorregou no lençol como quem sabe que lá vem conta, cobrança ou causo.

Mas não era boleto >> era cumade,

já mandando o relatório da vida:

briga com cumpade antes mesmo do café coar.

 

Desliguei o telemóvel com aquele suspiro que só quem ouve muita alma entende.

Olhei pro gato preto estirado no canto da cozinha,

ele me mirou com olho de quem já sabia:

“Te ajeita, mulher, que hoje a conversa vai ser daquelas.”

 

Tomei meu café como quem toma um doce com gosto de amargo,

porque consolo também tem hora marcada > e hoje era dia.

 

Nem passou muito, o telemóvel tocou de novo.

Era ele, o próprio cumpade,

com a voz meio mole, meio dura.

Disse que tava de folga, ia aproveitar pra fazer uns remendos no fundo da calça,

mas o fundo mesmo era outro: era da alma.

 

Eu, sem muito floreio, disse: > Chegue pro lado de cá. Aqui a gente costura até silêncio que rasgou.

 

Desliguei rindo...

O gato preto deu uma voltinha em cima do tapete e se ajeitou no seu posto de juiz do invisível.

Enquanto esperava, botei a garrafa de café na mesa da máquina, ajeitei a tesoura e deixei a alma em ponto de linha.

 

Cumpade chegou com aquele jeito de quem traz mais peso que pano.

Entrou dizendo:

> A costura me chamou…

 

Sentei ele na cadeira da frente, puxei o banquinho e, entre um ponto e outro na calça furada fui alinhavando palavras no seu peito.

 

Falei pra ele que tem raiva que grita, mas é só medo querendo abraço.

Que às vezes, o amor da cumade tá só pedindo pra ser visto, não desafiado.

E que mulher quando cala, não é porque não sente > é porque sente demais.

 

Enquanto eu falava, o gato preto cochilava > porque conselho dado com fé nem precisa de aplauso.

A tesoura fazia seu ofício, cortando os excessos, e o café ia adoçando a prosa amarga.

 

Remendei calça, e remendei cumpade.

mais leve parecia estar, agradecendo com aquele jeito de homem que ainda não aprendeu a chorar sem pedir desculpa.

 

Eu fiquei ali, ajeitando a bagunça, sentindo o cheiro do pano e do silêncio resolvido.

 

Não! cumade espere lá, calma

Me dê prazo... para me ouvir rummmm

 

Cumpade então rebateu, com a voz trêmula mas firme:

 

> A senhora por certo já sabe do causo.

A fulana deve ter passado o fio da história, do jeitinho dela.

Mas agora é minha vez.

 

Trabalho todo santo dia > e não é só pelo pão não.

É pelo bem-estar, pelo teto, pela tal segurança que todo mundo quer.

Mas chego em casa e sou cobrado sem trégua,

chamado de inútil como se amor fosse moeda pra descontar frustração.

E o pior, cumade…

como vingança, me negam até o dengo debaixo dos lençóis.

E só eu e o Santo Binedito sabe como esse silêncio de dengo o quanto isso me fere.

 

A sala ficou muda.

Só o barulho da máquina girando e o fundo da caneca recebendo mais bucadim de café.

Olhei pro gato preto, que ergueu uma orelha e baixou de novo, como quem diz:

"Agora é contigo, mulher."

 

Suspirei, encostei a agulha, e falei manso, mas certeira:

 

> Cumpade… remendo bom começa com linha dupla: uma do que a gente sente, outra do que o outro cala.

Não adianta vestir farda de soldado se o peito anda estourando trincheira por dentro.

E nem sempre a mulher nega o lençol por maldade.

Às vezes, é cansaço, é raiva guardada, é palavra engasgada que não teve escuta.

 

Fale com ela sem espada na mão,

sem escudo na frente.

Fale com homem inteiro > não só com o pai, o trabalhador, o provedor.

Mostre o que dói, sem gritar.

Peça, sem cobrar.

Porque carinho não é prêmio, é caminho.

 

Ele ficou ali, meio sentado, meio quebrado.

 

Antes de sair, tomou o último gole de café e murmurou:

 

> A senhora hoje costurou foi mais do que pano… costurou o que nem nome eu sabia dar.

 

Sorri, ajeitei a linha na almofada e respondi:

 

> Pois então, vá. Mas vá disposto a escutar também.

Que casamento não se sustenta só de tijolo nem de lençol.

Se sustenta é de alma em alma, remendo em remendo.

 

E o gato preto, no seu trono de almofada,

fechou os olhos como quem aprova a sentença. Diz até o Santo Binedito dúvida o que debaixo do lençol vai truar...🔥

 

No pedacim da rua onde a fama me acompanha,

sou costureira, benzedeira e conselheira >

não sei tomar o benzo certo,

mas sei acolher alma que quer sossego.

 

Moral

 

União entre duas pessoas não é costura sem nó, nem tecido sem avesso.

É remendo constante entre o que cada um sente e o que o outro silencia.

Às vezes, o amor pede coragem pra ouvir sem se defender,

e ternura pra falar sem ferir.

Porque convivência é isso:

um ponto de acolher,

outro de ceder,

e muitos de refazer o que o tempo ou o orgulho rasgou.

 

No fim, quem entende que carinho não é cobrança > mas presença >

descobre que o verdadeiro dengo não mora só nos lençóis,

mas no gesto miúdo que diz:

"eu tô aqui, mesmo quando tá difícil costurar."

 

Prosa poética com alma de crônica 

 

É isso ai

 

 

 

Elixandra ( costura pensamento)
Enviado por Elixandra ( costura pensamento) em 24/04/2025
Alterado em 24/04/2025
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