![]() Costura Quente: O Botão Não Aguentou
Subtítulo: No terreiro da costureira, o silêncio também se desabotoa.
O sol nem tinha espantado o sereno da calçada quando o botão voou. Foi no estalo. A farda do açougueiro abriu no meio da rua, bem no peito, como quem diz: “tô cansada dessa pressão”.
Ele olhou pra camisa estourada, suspirou fundo, e pensou no galo cantando mais cedo, lembrando que o turno no açougue começa cedo demais pra homem com camisa rasgada. A esposa, amarga e emburrada, cruzou os braços quando ele pediu pra pregar o botão.
> Tô cansada de costurar pra tu e tu não aprender a remendar nada pra mim > ela disse, sem nem olhar nos olhos dele.
Saiu sem resposta. Mas levou o silêncio dela no bolso junto do botão solto. E aí, caminhando feito quem busca mais do que linha e agulha, pegou o pedaço de rua que levava até minha casa.
Sou eu, a costureira do gato preto. Aquela que costura pano e alma, que benze com linha e aconselha com ponto atrás.
Portão: toc toc toc.
Abri a porta com a mão cheia de linha e o pensamento no fogão, onde o café passava devagar. Ele me olhou como quem pede mais do que um favor, mais do que ponto.
>Costureira chegue... me socorre?
Olhei pra camisa, depois pra cara dele. Sentei devagar, ajeitei os panos sobre o colo, e chamei:
> Vem cá, me entrega esse rasgo.
Enquanto alinhava o botão, ele soltou num desabafo meio engasgado:
> Cê sabe, Dona ... às vezes a gente quer que a mulher remende tudo pra nós, sem ver o tanto de buraco que a gente mesmo abriu.
Fechei os olhos como quem faz reza com a mão pousada no peito e rebati com leveza:
> E linha fina, meu camarada, não segura furo de quem não quer aprender a costurar junto. Costura que só um puxa, cede... arrebenta.
Ele baixou a cabeça. O gato preto passou no meio das pernas dele como quem remexe silêncio antigo. Lá fora, o vento batia nas folhas secas do quintal. Aqui dentro, era eu e ele e a história que a camisa rasgada contava.
Dei o nó no final da costura, entreguei a farda remendada e um olhar cheio de conselho escondido.
> Tá pronto. Mas vê se aprende: botão estourado é só aviso do que não foi cuidado com tempo. Linha nenhuma segura desleixo de alma.
Ele agradeceu com um sorrisim tímido e se foi, ajeitando a camisa e a cabeça.
Fiquei ali sentada, ouvindo o rangido do portão e a cantoria do rádio velho dizendo que amor bom é aquele que se refaz no cuidado.
O gato preto miou no meu pé, como quem pergunta:
E aí, remendou mais um homem perdido?
E eu disse, passando a mão no pano florido do meu vestido:
[ Remendei foi a consciência dele. Que o botão é só desculpa pra quem tá precisando escutar.
Moral da história:
A vida não é só fardo nem obrigação. É preciso parar, lavar a alma nos silêncios simples, amar quem caminha do lado, dar bênção pra mãe, passar um café com fé e cheirar o tempo devagar. Porque o futuro é chão invisível, o passado já virou bordado, e o agora... ah, o agora é agulha viva costurando o infinito no pano breve do instante.
Essa prosa não é só história > é reza sussurrada na beira do mundo, lembrando que até um botão solto tem seu motivo sagrado. Que todo corte tem chance de costura. E que o pano rasgado de hoje pode ser, amanhã, o tecido mais bonito de se vestir.
Não existe separação real: a dor de um é fiapo que costura o outro. O orgulho, quando mal cuidado, é semente seca plantando solidão pro amanhã. A amargura, essa danada, é faísca que acende aos poucos e, quando a gente vê, já virou incêndio nos afetos.
Por isso, remendar-se é um ato sagrado. Reconhecer-se no outro é o começo de toda cura. E viver... viver é aceitar que somos todos parte do mesmo tecido, costurados pela mesma linha invisível que une céu, chão e coração.
Crônica filosófica poética com alma de prosa... É isso
Elixandra ( costura pensamento)
Enviado por Elixandra ( costura pensamento) em 25/04/2025
Alterado em 25/04/2025 Copyright © 2025. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. Comentários
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