![]() "Linha de Cansaço" ( filho cuidador do pai idoso)
O tempo não perdoa o tecido, nem o corpo. E Seu Amâncio, que um dia alinhava paletós com régua de ouro, agora andava torto, tropeçando nas dobras da própria sombra. O filho, Tonico, seguiu com ele, mas diferente dos contos de ternura, não por escolha doce >> foi ficando, foi não indo, foi adiando a própria vida. A juventude passou feito ponto invisível: presente, mas não aparente.
Tonico era bom naquilo que fazia fora de casa: vendedor de carro, metódico, bem-apessoado, voz firme. Mas dentro de casa...... a firmeza cedia. A vista do pai, cada dia mais embaçada, obrigava o filho a voltar correndo, limpar sangue de quedas, alimentar o velho com colherada de silêncio.
>< Toda noite a mesma coisa, pai... ...eu não tô dando conta, não. Trabalho o dia inteiro e chego aqui pra ser enfermeiro, faxineiro, e escutar tu gemer no sofá.
Seu Amâncio, já mudo de vergonha e rugas, baixava os olhos opacos. Tinha linha de costura na lembrança, mas linha de afeto embolada no presente. Sentia-se um fardo, mas ainda assim, em alguns cochilos, sonhava que costurava com o filho, lado a lado.
Certa noite, o chão da cozinha o engoliu de vez. Tonico chegou do trabalho e encontrou o pai caído, frio, paletó aberto como peito sem proteção. Chamou ambulância, fez sinal da cruz, mas dentro..... respirou fundo, e pela primeira vez em anos, não correu. Sentou no batente da porta e chorou de um jeito estranho, misturado de pena e alívio.
No velório, pouca gente. Três irmãos vieram de longe, choraram bonito, como quem chora lembrança e não convivência. Tonico ficou quieto. Não contou dos tombos. Não falou das mágoas. Mas à noite, em casa, abriu a velha gaveta do ateliê do pai. Lá estava um molde com o nome dele: "Paletó para Tonico >> corte reservado".
Dobrou o molde, encostou a cabeça na mesa de corte, e murmurou:
>< Pai, desculpa. Eu também rasguei onde não devia.
E dormiu ali mesmo, sobre o tecido velho, costurado de culpa e silêncio.
Análise Introspectiva de “Linha de Cansaço”
>< Sentimentos Principais (do filho e do pai) Do Filho (Tonico):
Exaustão emocional: viver entre o trabalho e os cuidados do pai.
Ambivalência afetiva: amor e raiva coexistem.
Culpa reprimida: por não conseguir dar mais, por desejar descanso.
Vergonha velada: por sentir alívio após a morte do pai.
Frustração: por ter deixado de viver a própria vida.
Silêncio emocional: dificuldade de expressar o que sente com verdade.
Do Pai (Seu Amâncio):
Solidão profunda: mesmo com o filho presente.
Sentimento de inutilidade: por depender, cair, atrapalhar.
Vergonha e resignação: por ser visto como fardo.
Saudade de si mesmo: do tempo em que era útil, reconhecido.
Esperança simbólica: sonha costurar com o filho, como gesto de reconciliação.
Sentidos Envolvidos (na experiência emocional do conto)
Visão: A perda da visão do pai simboliza a cegueira emocional entre eles.
Audição: Silêncios carregados, gemidos abafados, ausência de diálogo verdadeiro.
Tato: O toque está presente na queda, na colherada, no último gesto de deitar sobre o molde.
Memória: O molde guardado como última costura não feita >< lembrança que pulsa.
Respiração: O suspiro de alívio no momento da morte >< símbolo do desgaste final.
Temas e Causas Sociais Envolvidas
Abandono invisível de idosos: mesmo com a presença de um cuidador, o afeto pode estar ausente.
Solidão do cuidador: falta de apoio, invisibilidade do esforço, pressão social.
Romantização do cuidado filial: obrigação sem estrutura emocional ou suporte coletivo.
Cansaço psíquico e físico: consequências da sobrecarga sem divisão de tarefas.
Falta de políticas públicas efetivas: para suporte a cuidadores familiares e idosos dependentes.
Cultura do silêncio masculino: ambos personagens homens, não verbalizam emoções.
Parâmetros de Leitura/Reflexão
Parâmetro Representação no conto Reflexão sugerida
Relação pai-filho Amor não dito, cuidado sem ternura Como expressamos afeto além da obrigação? Envelhecimento Queda, perda da visão, inutilidade percebida Estamos preparados para envelhecer com dignidade? Culpa e luto Alívio seguido de remorso É permitido sentir alívio após o fim do cuidado? Silêncio afetivo Comunicação truncada, gestos substituindo palavras O que deixamos de dizer por orgulho ou medo? Memória e legado Molde com nome do filho, ato simbólico O que deixamos para além dos bens? Desgaste psicológico Cansaço extremo do cuidador Quem cuida de quem cuida?
Conto em prosa poética com tom ensaístico, pois também provoca reflexão social e existencial >< especialmente sobre envelhecimento, e silêncio afetivo.....
Próximo capítulo parte 02:
Uma continuação, talvez anos depois, quando Tonico vira o velho....
A leitura é guiada pelo olhar subjetivo de quem lê, sendo interpretada de formas diversas conforme suas crenças, limitações e experiências. Por isso, um mesmo texto pode conter múltiplos significados.
É isso.....
Elixandra ( costura pensamento)
Enviado por Elixandra ( costura pensamento) em 07/05/2025
Alterado em 09/05/2025 Copyright © 2025. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. Comentários
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