![]() No Tear de Outras Vidas / O Bordado do Poeta Perdido
O Convite...
Lena convidou Zaira para o sarau. As duas conversavam sobre assuntos corriqueiros, entre xícaras de chá e devaneios soltos, quando a amiga mencionou que recitaria um poema de um autor que muito admirava. Havia brilho nos olhos de Lena, e um respeito sagrado ao pronunciar o nome do poeta, como se falasse de um templo antigo.
Zaira, curiosa por natureza e sensível às coisas da arte, aceitou o convite sem hesitar.
Na noite do sarau, o ambiente estava tomado por uma atmosfera especial. Luzes amenas, almofadas espalhadas no chão e aquele silêncio reverente que só a poesia é capaz de impor. Quando Lena subiu ao pequeno palco, um instrumental suave acompanhava seus passos. E então, sua voz / doce, firme, quase sussurrada / começou a dar forma às palavras do tal autor.
Zaira, sentada ao fundo, foi imediatamente tomada por uma sensação que não sabia nomear. As palavras costuravam-se dentro dela como fios de uma colcha antiga, feita de pedaços de memórias que ela não lembrava ter vivido.
Sentiu o corpo leve. A mente em silêncio. E, por um instante, acreditou ter deixado a si mesma. Era uma viagem / não no tempo, mas na alma. Algo antigo, remoto, talvez de outras vidas.
Quando a leitura terminou, aproximou-se de Lena com os olhos ainda marejados e perguntou:
—> Quem escreveu esse poema?
Lena sorriu.
—> O nome está na exposição ali ao lado. Você pode levar um livro pra casa..... quem sabe ele já esteja bordado em você. Talvez o poeta já more em você.
O Vulto e a Voz.....
Zaira comprou o livro naquela mesma noite. Em casa, abriu na primeira página, como quem abre um bordado delicado, revelando pontos e linhas invisíveis. Lá estavam o nome do autor, uma breve biografia, e uma fotografia: um homem de olhos profundos, feições marcadas e um olhar que parecia vir de um lugar antigo demais para o presente.
Um arrepio percorreu sua espinha. Não era beleza o que via, mas reconhecimento. Aquela imagem lhe parecia estranhamente familiar, como se fosse um pedaço de tecido retirado de um pano que ela mesma havia usado em outro tempo.
Mais abaixo, um endereço eletrônico. E foi por ele que começou.
Escreveu-lhe uma carta (imail) carregada de admiração e sentimento. Falou sobre o impacto do poema, da sensação de ser atravessada por palavras que se entrelaçavam com as suas próprias, como fios de uma mesma trama. Enviou. Não esperava resposta.
Mas ela veio.
Numa noite calma, enquanto contemplava a lua na varanda, seu celular vibrou. Era o tal autor. Agradecia o contato com gentileza. E, ao final do e-mail, um presente / um poema escrito especialmente para ela / ou assim ela quis acreditar.
A partir dali, começaram a trocar mensagens. Com o passar dos meses, a conexão se aprofundava. Zaira mergulhou por inteiro / nas palavras, nas esferas, no não dito. Apaixonou-se. Não por ele, exatamente. Mas pelo que ele representava / um elo com algo maior, como se ambos bordassem, à distância, uma tapeçaria invisível.
Escrevia com verdade. Com poesia. Com entrega.
E foi aí que tudo começou a se desfiar.
As respostas dele tornaram-se ambíguas. Cheias de duplos sentidos, pequenas ironias, frases que pareciam elogios mas vinham recheadas de julgamento. Havia um gosto estranho naquelas palavras / como se ele estivesse cortando, com uma tesoura fria, os fios que antes tecia com ela.
Zaira percebeu / havia algo nele que não suportava sua luz.
Talvez fosse a inveja. Talvez o orgulho ferido. Ou quem sabe um tipo de machismo delicadamente disfarçado, que não aceitava que uma mulher pudesse bordar suas palavras com tanta potência e verdade. As mensagens tornaram-se uma espécie de tecido gasto / cheio de elogios frios e críticas sutis.
E mais / havia ali um tipo de presença estranha, como se ele tentasse puxar os fios de sua criação, alimentar-se da sua inspiração, manipular suas emoções / como um tecelão que rouba o pano alheio.
Aos poucos, o vulto foi se desfazendo.
O poeta, que antes parecia bordar algo sagrado, revelava-se apenas um homem comum / ferido, egóico, amargo. Talvez nunca tenha sido mais do que isso.
Zaira, por sua vez, seguiu. Mais forte. Mais só. Mais inteiramente.
Sabia agora que nem todo bordado é abrigo / alguns são apenas redes onde a gente se enreda sem perceber.
Mas também sabia que nada disso foi em vão.
Porque foi ali, entre linhas e desilusões, que ela descobriu sua própria voz.
Nota ao Leitor (ou Explicação Final)
Este conto / ou fragmento de alma / não é apenas uma narrativa sobre um encontro poético. Ele é, acima de tudo, um mergulho nas camadas invisíveis da experiência feminina com a arte, o sentir e o escrever.
Fala do poder da arte de nos atravessar, de como uma simples leitura pode despertar memórias que talvez não sejam apenas nossas / como se, ao ouvir um poema, o corpo recordasse o que a mente nunca viveu. Fala da idealização do outro, de como projetamos beleza onde há sombra, de como criamos poetas dentro de vultos, e amamos o que sentimos, não o que está diante de nós.
E, sobretudo, fala do despertar da escrita como revelação pessoal / quando a mulher começa a escrever, não para agradar, mas para existir. Sua escrita se torna sua voz, seu espelho, sua fúria e seu alívio.
Mas o texto também desce à sombra.
Mostra a frustração com o real por trás do símbolo, quando o poeta revelado não é o que parecia, quando a beleza das palavras esconde o ego frágil de quem as escreve. Ali se revelam outras faces: A inveja disfarçada, o machismo velado, a tentativa de sugar a criatividade alheia, como se o poder de uma mulher escrever com verdade ferisse o ego do homem que acreditava ser o único detentor da palavra. Esse sugamento, essa "sudação literária", é sutil e perigosa / uma forma de colonizar o pensamento criativo do outro, drenando sua força, desvalorizando sua expressão.
Esse conto, por fim, é sobre a força de uma mulher em nome de todas as mulheres que sente, escreve e enfrenta. Que vive a beleza e encara a ruptura. Que não se cala diante do incômodo, e que transforma até o desencanto em matéria poética.
Se você, leitor ou leitora, em algum momento sentiu que suas palavras foram roubadas, diminuídas, criticadas, ou silenciadas / este texto é também por você. Porque escrever é mais do que expressão. É resistência. E, convenhamos, não importa se seja escritor amador ou profissional / ninguém nasceu poeta, escritor, perfeição. Alguns apenas têm a coragem de não fingir o contrário. A Travessia é de todos / e merece respeito....
É isso...
Elixandra (costura pensamento filosófico)
Enviado por Elixandra (costura pensamento filosófico) em 10/08/2025
Alterado em 10/08/2025 Copyright © 2025. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |